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Chico Buarque chega a Salvador com a turnê ‘Que Tal Um Samba?’

Chico Buarque chega a Salvador para o encerramento da fase nacional da turnê ‘Que tal um samba?’, que tem a cantora Mônica Salmaso como convidada. O espetáculo fica em cartaz na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, de 28 a 30 de abril. O show estreou em João Pessoa e já passou por dez cidades brasileiras, estando atualmente em cartaz em São Paulo até o início de abril. O show foi gravado em fevereiro, no Rio de Janeiro, para lançamento em áudio e vídeo, pela gravadora Biscoito Fino.

‘Que tal um samba?’

“Segunda lição do dia: um bicho só é só um bicho; agora, todos juntos, somos fortes!”.

Quando entra no palco e, acompanhando-se apenas por uma kalimba, Mônica Salmaso canta ‘Todos juntos’, abre-se a tal fenda no espaço-tempo que se abre sempre que a arte encontra a História. E o que se vê então não é apenas a grande cantora da atualidade, afinação e interpretação perfeitas, fazendo a canção clássica de ‘Os saltimbancos’, mas a menina de seis anos de idade sendo apresentada à obra de Chico Buarque pelo musical infantil que estreou em 1977. E aprendendo a tal segunda lição do dia que o Jumento – o mais inteligente do bichos, apesar da fama – ensina na peça aos seus companheiros Cão, Galinha e Gata, de que suas patas não seriam nada sem os dentes do cachorro, o bico da galinha, as unhas da gata: “Todos juntos somos fortes/Somos flecha e somos arco/Todos nós no mesmo barco/Não há nada pra temer”, canta Mônica, emulando os bichos que, em ‘Os saltimbancos’, comemoram e tentam entender como conseguiram expulsar da casa seus donos opressores.

De título insinuante, o show ‘Que tal um samba?’ – o primeiro em que Chico Buarque divide o palco com uma cantora desde a célebre temporada com Maria Bethânia em 1975 – põe o público exatamente nessa situação de Mônica: a de redescobrir (ou mesmo descobrir, para os mais novos) o cancioneiro de Chico Buarque, sua estética e sua ética, através de uma antologia impecável e muitas vezes surpreendente de sua obra, com diálogos internos entre as canções, achados e clássicos, num arco que vai da marcha-rancho ‘Noite dos mascarados’ (1967) ao novíssimo samba salseado que dá título e conceito ao espetáculo. São 55 anos de sambas e canções, de “lutas contra o rei”, como no dueto ‘Sem fantasia’ (da peça ‘Roda viva’, 1968), à comemoração da volta ao samba e à democracia “Depois de tanta mutreta/Depois de tanta cascata/Depois de tanta derrota/Depois de tanta demência/E uma dor filha da puta” – de ‘Que tal um samba?’ (2022).

Quando a turnê de ‘Que tal um samba?’ Começou em João Pessoa, na véspera daquele ainda temível sete de setembro de 2022, o início do show era assim: arrepiar a pele, palpitar o coração, pôr a cabeça para rodar. É certo que isso era também causado pela tensão política, o inusitado do repertório, a beleza de ‘Todos Juntos’, mas muito principalmente pelo que ela aludia naquele momento: de que era preciso união, como a dos bichos de ‘Os Saltimbancos’, para superar os quatro, cinco, seis anos de terror que o Brasil vivia.

Agora, depois das eleições e de percorrer diversas capitais brasileiras, em 2023 ‘Que tal um samba?’ chega a São Paulo no dia 02 de março, no Tokio Marine Hall, seguindo para Salvador em abril e para Portugal em maio quase como um outro show – embora seja quase o mesmo, apenas burilado na estrada por Chico, Mônica e os músicos dirigidos por Luiz Cláudio Ramos.

‘Que tal um samba?’, agora, é uma convocação para se amar de novo um Brasil que renasce, através da obra de seu maior compositor. Mônica Salmaso abre o show e faz as seis primeiras canções solo, ainda com ‘Todos juntos’ puxando as outras. São, evidentemente, grandes canções da história da música brasileira mas, antes, parecem uma sequência de temas “proscritos” no Brasil dos últimos anos e que agora renascem, livres: a sublime canção ‘Mar e lua’ (1980) desvela,  por exemplo, o amor entre duas mulheres;  ‘Passaredo’, sofisticada canção feita com Francis Hime em 1975/1976 e ambientalista avant-la-lettre, reaparece como um hino no momento em que a natureza, a sustentabilidade e seus defensores foram explicitamente atacados no Brasil; enquanto o samba ‘Bom tempo’ prevê tempos melhores como já fazia quando foi lançado no também sombrio ano de 1968. A obra-prima ‘Beatriz’, parceria com Edu Lobo para o balé ‘O grande circo místico’ (1982), é recriada por Mônica como uma celebração do mistério e da grandeza da arte. Enquanto a toada ‘Paratodos’ (1993), que marca a entrada de Chico no palco, resume o espírito deste momento inicial do show, uma homenagem imodesta à música brasileira e ao seu papel sendo exercido ali mesmo no palco naquele momento, o de ajudar a superar os momentos ruins, celebrar os bons.

Com Chico no palco junto à Mônica, começam os duetos e os diálogos entre as canções, marca do roteiro do show. “O velho Francisco” (1987), as recordações e fantasias confusas de um velho brasileiro, reencontra esse passado violento, confuso e ainda assim lírico na obra-prima ‘Sinhá’, parceria com João Bosco de 2011.

Os duetos entre homem e mulher ganham conotações diversas, como o sofrido samba canção ‘Sem fantasia’, o malandro samba sincopado ‘Biscate’ (1993) e a valsa afrancesada ‘Imagina’, tão leve, livre e moderna que o casal protagonista chega a cambiar mutuamente de sexo ao passar pelo arco-íris. Composta por um jovem Tom Jobim em 1947, sob o título de ‘Valsa Sentimental’, a melodia só foi ganhar letra quase quatro décadas depois, em 1983, quando Chico lhe escreveu os versos e a batizou com o nome atual. ‘Imagina’ cumpre a função de encerrar, de forma apaixonada, a série de duetos de amor.

A partir de agora sozinho no palco, Chico Buarque canta seu hino da canção popular, ‘Choro bandido’ (feito com Edu Lobo em 1985), como um aviso irônico diante da saída de Mônica do palco: “Mesmo que os cantores sejam falsos, como eu/Serão bonitas, não importa/São bonitas as canções”. E passa, às vezes, com a volta de Mônica ao palco quando a música assim exige, a desfiar seu vasto e vário cancioneiro. Envolvidos por um cenário acolhedor criado em madeira por Daniela Thomas como se fosse uma caixa que os abrigasse de tudo que não fosse o palco e a música, Chico e os músicos fazem 18 generosas canções, grande parte delas acompanhada da projeção sobre o cenário de uma imagem de algum fotógrafo brasileiro.

Aí, nesta interação de canção e fotografia esteja talvez o segredo do show: além de um recital, ou do desfile de um cancioneiro, o que ‘Que tal um samba?’ propõe é uma sequência de flagrantes, íntimos ou épicos, da História e da vida brasileiras, uma espécie de “Brasiliana”, se fosse uma exposição de quadros, fotos ou objetos.

E nesta Brasiliana os assuntos e imagens do Brasil surgem de forma, digamos, dialética. É a festa dos sem terra quando finalmente conquistam a terra e começam a plantar de ‘Assentamento’ (1997) e o latifúndio decadente de ‘Bancarrota blues’ (parceria com Edu Lobo, 1985). É o pai encantado pelas filhas que crescem e começam a sair sozinhas de ‘As minhas meninas’ (1987) e a filha que decepciona tanto a mãe a ponta de ela desejar “te recolher pra sempre à escuridão do ventre” de ‘Uma canção desnaturada’ (1978). É a eternidade das pedras e montanhas do Rio de Janeiro em ‘Morro Dois Irmãos’ (1989) e “a cidade submersa” de ‘Futuros amantes’ (1993); a trajetória triste de ‘O meu guri’ (1981) que anos depois, de individual se torna coletiva em ‘As caravanas’ (2017), quando muitos guris resolvem pegar um sol em Copacabana.

Numa sequência impressionante e também variada em forma e conteúdo de amores tão intensos quanto impossíveis – dos boleros ‘Sob medida’ (1979) e ‘Bastidores’ (1980), ao ‘Samba do grande amor’ (1983), o também samba ‘Injuriado’ (1998) e ‘Tipo um baião’ (2011) –, Chico faz uma homenagem a uma de suas intérpretes do coração com ‘Mil perdões’, melodia extraordinariamente inspirada que deu para Gal Costa interpretar em 1983.

À vontade no palco ao lado de Mônica Salmaso e dos músicos que o acompanham há tantos anos, Chico terminaria o show em festa com ‘Que tal um samba?’, canção que mesmo composta antes já vislumbrava a nova fase que o Brasil começa a viver em 2023, não fosse a terceira lição do dia que os bichos aprendem em ‘Os saltimbancos’.

Se a primeira lição é a de que o único amigo do bicho é o próprio bicho e a segunda, como vimos no início do show (e deste texto), é a de que “todos juntos somos fortes”, a terceira lição, não menos verdadeira ainda que sombria, é a de que “eles sempre voltam”, ensinava o Jumento referindo-se aos donos opressores dos bichos.

Sutilmente, no bis, Chico Buarque, Mônica Salmaso revisitam ‘Maninha’ e ‘João e Maria’ (parceria com Sivuca), ambas canções algo infantis feitas no mesmo 1977 da estreia de ‘Os Saltimbancos’, cantigas escritas em tempos difíceis. A primeira diz “que um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar”, referindo-se ao ditador de plantão, mas poderia ser ao projeto de ditador que agora foi botado para fora. ‘João e Maria’, menos otimista, mais reflexiva, encerra o show que festeja o Brasil e sua cultura, mas alerta como o Jumento aos outros bichos: “E agora eu era um louco a perguntar/O que é que a vida vai fazer de mim?”.

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