“Bruxo” e “Campeão” são alguns dos apelidos que Hermeto Pascoal ganhou ao lado de sua trajetória. Difícil mesmo é precisar quantos anos tem essa trajetória, porque ele mesmo diz que já “nasceu” música. Por essa conta, já são quase 88 anos de som, que não deve terminar tão cedo.
Resultado de mais de 50 entrevistas e anos de pesquisa, o livro Quebra Tudo – A Arte Livre de Hermeto Pascoal, do jornalista paulistano Vitor Nuzzi, autor de Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida, de 2015, finalista do Prêmio Jabuti, conta um pouco da história e das histórias protagonizadas pelo artista de Lagoa da Canoa, na região de Arapiraca, em Alagoas. A obra lançada pela gravadora, produtora e editora Kuarup tem prefácio do pesquisador Tárik de Souza e posfácio do professor Paulo Tiné.
Hermeto Pascoal nasceu em 1936 em um dos vários povoados de Lagoa da Canoa, chamado Olho D´Água, que ainda hoje preserva sua simplicidade. Hermeto e seu irmão Zé Neto, um ano mais velho, nasceram albinos. E pegaram o ônibus para fazer música em Recife. Conheceram Sivuca, e alguém quis formar o Trio Pegando Fogo, com os três albinos ruivos. Foi de curta duração, mas Sivuca viu logo que o menino Hermeto portava o “fogo sagrado” da música. E assim foi.
Da rádio em Pernambuco, depois de aventuras que incluíram ser escondido no mato pela mãe, receosa que Lampião levasse seu galeguinho, o garoto albino foi tocar na noite de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Formou vários grupos. O mais famoso é o Quarteto Novo, que marcou época na música brasileira, ao lado de Airto Moreira, Heraldo do Monte e Theo de Barros. Demorou um pouco para acontecer, porque Hermeto foi inicialmente vetado pelo executivo responsável por ser “feio”. Sua casa no bairro do Jabour – a família foi uma das primeiras a morar no local –, no Rio, tornou-se ponto de músicos.
Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, Hermeto Pascoal foi para os Estados Unidos, chamado por Airto e Flora Purim. Conheceu Miles Davis e outros monstros do jazz – e teve músicas não creditadas em um LP de Miles, com quem teria até lutado boxe. Fez chover no Festival Internacional de Jazz realizado em 1978, em São Paulo, e no ano seguinte estrelou uma noite inesquecível ao lado de Elis Regina em Montreux. Um presente que ganhou da vida, como diz.
Quantas músicas? Dez mil, 11 mil? Ninguém sabe direito. Às vezes, sai mais de uma por dia. E sai mesmo. Tanto é que, entre junho de 1996 e junho de 1997, ele escreveu música todos os dias. E com comentários, sobre incontáveis assuntos – e isso até virou livro Calendário do Som.
Hermeto também participou da gravação de um hoje raro disco Imyra, Tayra, Ipy, com Taiguara, reeditado em CD pela gravadora e produtora Kuarup. Cuidou de um dos principais LPs de Fagner e causou reboliço ao levar porquinhos para “participar” de um festival. Eles foram apreendidos pela polícia. E a intérprete de sua canção, a pacata Alaíde Costa, chegou a ser vista como subversiva. Ela teve até o microfone cortado e, com raiva, o arremessou em direção à plateia.
Com várias formações ao longo dos anos, desde que retornou ao Brasil, Hermeto Pascoal também é lembrado pelos shows que, muitas vezes, terminavam na rua. E não são poucos os relatos de apresentações que terminavam já com o dia claro. Isso aconteceu até no famoso festival de Águas Claras, no interior de São Paulo, com Hermeto tocando flauta, sentado à beira do palco, para um público hipnotizado.
Inicialmente sanfoneiro, Hermeto desenvolveu o que chama da música universal, com liberdade criativa absoluta. Já ganhou Grammy, já se tornou Doutor Honoris Causa na Julliard School, das mãos de Wynton Marsalis, virou nome de rosa cultivada pelo cantor e compositor João Bosco. E também deu nome a uma nova espécie de árvore, gigante, descoberta por cientistas. Com seu grupo, continua tocando todos os sons no mundo todo.